Heróis diferentes…

Semana passada assisti numa rede social um vídeo com uma cena brutal de espancamento num vagão do metrô de Nova York. Já devia estar acostumado com essas cenas, mas confesso que, desta vez me pareceu que a violência do ser humano subiu mais alguns degraus na escalada rumo à selvageria absoluta.

Acostumado com os filtros da mídia, com um jornalismo que procura apontar os vilões de sempre agredindo as vítimas de sempre – aquelas situações que dão maior audiência, portanto mais retorno financeiro – desta vez me espantei com um homem preto, jovem e forte, espancando um outro, franzino, este com traços de asiático…

A vítima de ontem é o agressor de hoje, elegendo uma nova vítima.

No Brasil apareceram em um canal de TV, em dois sites na internet (num deles deletado rapidamente) e, quanto à grande mídia, só. Não devem dar muita audiência – ou não se encaixam nos padrões desejados pelos manipuladores. Bombaram nas redes sociais, é claro.

Acredito que nos EUA devem ter aparecido muito mais.

Tanto que, imagino, esse homem negro chegou em casa e teve que explicar para seu filho, que o viu esbravejando que “vidas negras importam”, contra a injustiça do policial branco que sufocou o já rendido Floyd, o porque dele agora ter feito o mesmo ou pior contra um homem cujo único “defeito” foi ter os olhos puxados e a pele mais clara…

Talvez porque ele, afrodescendente, culpe o asiadescendente pela pandemia.

Mas não vou entrar nessa discussão estúpida – porque irracional – e sim falar de um outro homem, brasileiro, preto, atleta, um verdadeiro herói popular, que tive o prazer de conhecer pessoalmente e até trabalhar para ele: Edson Arantes do Nascimento, o Pelé.

Final dos anos 1980, início dos 1990. Um cliente e amigo, Faruk El Khatib, fez uma visita ao meu estúdio, para me propor que entrasse numa concorrência para criação de uma logomarca para o Pelé, seu cliente.

Me contou que vários designers e agências já haviam mandado suas propostas, mas o Rei não havia gostado de nada… Como ele já conhecia meu trabalho de longa data, achava que eu tinha chances reais… A grana não era muita, mas a projeção no mercado poderia ser bastante vantajosa para o ganhador…

Apesar de ser visceralmente contra concorrências (eu acreditava, e acredito até hoje, que a maioria delas era viciada, um jogo de cartas marcadas), topei a empreitada e dali uns 3 ou 4 dias apresentei minha proposta.

Como sempre procurei o óbvio: desenhei a silhueta do Pelé dando seu famoso salto, punho fechado ao alto, comemorando mais um gol, associada ao grafismo de sua ainda mais famosa assinatura, aquela dos autógrafos.

Sempre acreditei que o design deve apresentar uma ideia evidente – muita elucubração só satisfaz o autor, que se compraz em “ter que explicar sua obra” aos reles mortais (rs).

Vai daí que o Rei adorou a logomarca e a aprovou sem restrições ou “pitacos” de qualquer tipo. E acabou me encomendando também os Model Sheets, para o licensing da Marca.

Dentre outras coisas, para executar esse trabalho, precisaríamos de fotos, para ilustrar o material. Agendamos para um dia na sua casa no Guarujá, em seu campinho particular. Presentes apenas o Pelé, o Faruk, o fotógrafo Euclides (japonês, é claro!) e eu.

Começamos com o Pelé dando vários saltos levantando o punho.

Achei que ele fosse reclamar das muitas vezes que pedi que refizesse o salto, mas levou numa boa, repetindo a ação sem demonstrar qualquer desagrado.

A seguir, chutes a gol. O fotógrafo embaixo da trave, para pegar a cena como se fosse o goleiro. A surpresa: Pelé perguntou aonde queríamos a bola… Meio que de gozação, respondi:
– No ângulo esquerdo. Quase com displicência ele chutou: direto na gaveta!

– Ângulo direito! – pedi. E ele acertou em cheio! E assim foi: no canto direito, no esquerdo…
O Rei mostrando um dos porques era chamado de “rei”.

Até que ele falou para o fotógrafo: – No travessão, em cima de você…
Nenhum de nós levou muito a sério, até que ele mandou uma “bomba”, que explodiu no travessão, fazendo o japonês cair de costas com o susto. Depois, rindo, o fotógrafo exclamou, para não deixar passar batido: – Ah! Mas a foto eu peguei!

Terminada a sessão de fotos, fomos convidados para almoçar. Almoço sem frescuras, apesar de estarmos na casa e junto com sua majestade, o rei!

Um bom e relaxado papo. Boas histórias, boas risadas.

Final da tarde, saí dali com a alma leve. Pronto para dar o melhor de meus talentos, para atender às expectativas do rei. Espero ter conseguido.

E confirmei uma lição que recebi de meu pai, ainda criança: nunca pré-julgar ninguém, seja qual for seu credo, sexo, cor ou origem. Hoje brinco com quem me pergunta como encaro as diferenças, dizendo que não tenho preconceito – tenho pósconceito. Nem todos entendem esta diferença.

Às famílias de tantos negros, asiáticos, índios, brancos e pardos espancados e mortos apenas por serem diferentes, minha dor.

Ao rei, minha vênia.

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