A Origem

Aí por volta dos anos mil novecentos e sessenta e uns quebrados, a revolução corria solta. Nas capitais o pau comia porém, lá no interior, perto da divisa de São Paulo com o Paraná, a revolução ainda era uma piada.
Milicos do exército encontravam – sem querer, no susto – os guardinhas da força pública e dá-lhe tiro e debandada pra todo lado.
Soldadinhos levavam boas surras nas quebradas da cidade, por conta de ter mexido com as garotas dali – que na verdade estavam é com fogo no rabo, doidinhas pra namorar um fardadinho da capital… O resultado veio nove meses depois, pra desespero de muito pai desavisado.
Por essa época meu pai tinha um terreno com casa na Ilha Comprida, ao lado de Iguape, uma praia onde a família passava feriados e alguns finais de semana.
Terreno, aliás, que foi invadido, grilado, vendido e quando o velho foi dar conta, reclamando no cartório da cidade, já tinha uns dois ou três donos além dele – tudo com escritura: coisa bastante comum na região. Imagino que deva ser assim até hoje.
Em dia de viagem para a praia, todo mundo acordava cedo, para preparar a tralha.
Até hoje acho que era de propósito, mas toda vez a arrumação e carregação da Kombi acabava perto do meio-dia. Aí, mais meia hora de estrada. Acabava que sempre chegávamos a Pariqüera-Açú na hora do almoço, com todo mundo morrendo de fome.
Pariqüera-Açú (assim com trema, mesmo) merece um registro especial. Pra começar, quem batizou de “açú” estava de gozação – “Açú” quer dizer grande e Pariqüera era um “ovo”… E de galinha de primeira ninhada: bem pequenininho!
Sabe aquelas cidades das piadas que, quando você chega não pode nem piscar, porque passa direto e nem vê que a cidade começou e já acabou? Pois era naquela Pariqüera que os piadistas estavam pensando.
(E olha eu, ainda hoje, tirando uma com a cidade: na verdade pariqüera-açú significa “pesqueiro grande”. Mais uma pro seu Dicionário de Cultura Inútil.)
Mas então, continuando o caso: chegando à Pariqüera, pra quem vem do interior em direção à praia, do lado esquerdo da rodovia que corta a cidade ao meio, tinha (será que ainda tem?) um botecão, daqueles bem mulangambos, luz apagada pra economizar, cheio de bebum marcando ponto nos dois degraus da porta, contando os carros que passavam, com uma plaquinha muito da xexelenta onde se lia: TEmos BurAco QuEntE. Assim mesmo, misturando maiúsculas e minúsculas. Entendesse quem pudesse.
Meu pai estacionava o carro do lado direito mesmo, e não acho que fosse por respeito às leis de trânsito: ele mandava a gente esperar e ia sozinho comprar o lanche.
Contam as más línguas que foi num bar daqueles (Será que não era o mesmo?) que o velho parou, numa de suas caravanas políticas, para socializar com os locais. Vai daí que um bebum daqueles, sabe lá porque, resolveu fazer um “poema” bem canalha com o nome da minha família (Caiçara é tudo metido a poeta, trovador, fazedor de rima, essas coisas.). Nem bem ele completou a rima com “… ladrão” e saiu dali direto para onde “os que aqui estão por vós esperarão”. Será verdade?
Mas enfim, meia hora de fome depois, voltava o velho com o melhor sanduíche que já comi em toda a minha nada curta vida: uma bisnaga crocante, cortada ao meio revelando um recheio de carne moída misturada com linguiça caseira desmanchada, tudo bem refogado com cebola, cebolinha, alho, um pouco de tomate e muita salsinha!
Nunca soube como era feito. Na chapa? Na frigideira? Na panela mesmo? Qual ingrediente ia primeiro? Gostaria de ter sabido: hoje aquele sanduba faria o maior sucesso, desbancando algumas atrocidades que servem por aí.
Bem que eu tento reproduzir aquele buraco quente, mas nunca fica igual. Talvez seja porque aqueles eram temperados com a fome e a expectativa de um feriado na praia…