O gato.

Ribeirão das Onças, litoral sul paulista, meados dos anos sessenta, morava num sitiozinho próximo à BR-2, a estrada que depois viria a ser chamada de BR-116.
Vida de moleque, sem rédeas que guiassem e sem porteiras que impedissem, me aventurava nos confins dos matos, armado apenas de um bom estilingue – pra atirar valia qualquer pedra mais ou menos redonda, desde que do tamanho certo. Na época já usava óculos, mas ainda com boa pontaria, não havia cobra que escapasse… Na dúvida, matava primeiro e depois perguntava pra defunta se ela era venenosa.

Saía cedinho de casa e só voltava quando começava a ficar escuro, comendo o que achasse e o que me fosse oferecido – muito coquinho, brejaúva, goiaba, jabuticaba, mixirica, carambola, ingá e, quando aportava num sitio qualquer, café puro adoçado com rapadura, às vezes acompanhado de bolo de milho verde (ou fubá) com leite de coco, daqueles que desmanchavam na boca.
Às vezes voltava sem uma das unhas do pé, resultado de uma topada numa pedra mais traiçoeira. Só percebia o tamanho do estrago na hora do banho, quando a água com sabonete “queimava” na ferida. Até hoje as unhas do pé, sempre encravadas e tortas, me lembram dessa fase da vida.

Numa dessas aventuras resolvi acompanhar o ribeirão das onças, pra ver de onde ele vinha. Saindo da BR, no início uma estradinha – uma variante, como chamávamos – que depois virou uma picada e no fim só uma trilha. No mais só mato, cada vez mais fechado.
No fim dela uma casa de caboclos, pau a pique, um só cômodo com quarto, sala e cozinha. O banheiro, mais afastado. Na lateral uma moenda e um forno a lenha.
Apesar de moleque, até que eu era bem educado e chamei um “ó de casa”, batendo palmas. Não dá pra ir invadindo o espaço dos outros, não é?
Um velho, muito do desconfiado, apareceu na porta. Na janela uma senhora também muito velha. Assuntou pra ver se eu estava sozinho e cumprimentou com um “…dia” meio sumido.
Respondi com um “…dia” no mesmo tom, pois, como já disse, eu era um moleque muito do bem educado.
Me apresentei: nome, filho de quem, que é o mais importante e o que fazia por aquelas bandas…
O casal foi relaxando e não demorou para me convidarem pra entrar pra tomar um café, “passadinho na hora”, acentuou a senhora. E com mandioca frita! Aí não dá pra resistir…
Depois da terceira caneca – daquelas feitas de latinha de conserva ou de leite condensado – de café e um prato (o único da casa) de aipim crocante com sal salpicado por cima, a prosa foi ficando mais particular e eles me contaram que viviam ali “desde sempre”. Sozinhos. Não gostavam das gentes da cidade. Muito barulhentos e maleducados (assim mesmo, tudo junto sem hífen, sem espaço), diziam.
Concordei, eu também meio bugre…

Nasci e fui criado junto com gatos. Sempre tinha pelo menos um em casa. Com a convivência aprendi a gostar muito dos felinos, incluindo aí compreender e aceitar suas características muito especiais.
Assim, quando ouvi um miado debaixo da mesa, imediatamente me agachei e dei de cara com um filhotão de gato, cinza quando visto de longe – na verdade ele tinha o pelo começando com preto, que ia clareando até o branco, em camadas, dando a impressão de cinza. Patas enormes, o que indicava que ia crescer muito. Orelhas e focinho curtos, boa genética!
No interior a gente chamava aqueles gatos mirrados, com focinho comprido e orelhudos, de “fim-de-raça”, indicando que haviam nascido do cruzamento entre parentes – irmã com irmão, pai e filha, etc. Os que não morriam cedo, não davam em boa coisa…
Voltando ao gatinho, imediatamente gostei do bicho. Levei o dedo ao seu nariz, pra que ele me cheirasse e me “identificasse”. Sem medo algum (bom sinal!), ele cheirou um bocado e me “aceitou”, esfregando-se nos meus pés, sujos da poeira do caminho.
Com cuidado levantei-o com a mão envolvendo pela barriga e o coloquei no colo. Ofereci um pedacinho de aipim, que ele aceitou com voracidade. Mergulhei o próximo pedaço no café e ele gostou ainda mais. Mais um pedacinho, muito cafuné atrás das orelhas e já éramos amigos “de longa data”, com direito a “afiação” de unhas na minha perna!
Ali mesmo ele se ajeitou e ficou de espreita para o movimento de todos, incluindo os de uma gatona bem grande, três cores, “sua mãe” – me contaram os velhos.
Perguntei pelo resto da ninhada e me disseram que o gatinho ali era filho único. Coisa comum, disseram, quando a cruza é com gato do mato.
Aquela foi a “deixa” para que eu achasse que aquele gatinho tinha que ser meu. Ele também era bicho-do-mato! Que nem eu!
Olhei pra baixo e, juro pra vocês!, estava escrito no olho dele que ele achava a mesma coisa!
“Posso levar ele pra mim?” – Perguntei aos dois.
“Juro que vou cuidar muito bem dele!” – Prometi, com a honestidade característica das promessas infantis.
Os velhos me encararam, muito sérios e depois se olharam, sem dizer nada.
Saíram para o terreiro, onde cochicharam por um bom tempo, virados para os morros, olhando para o chão, para um e para o outro… De vez em quando uma espiada pra mim, no momento mais preocupado em fazer festa no gatinho.
Depois de um bocado de prosa eles voltaram, sentaram, me olharam muito sérios – daquele jeito que minha mãe fazia quando me passava um “sermão” – e disseram que sim, que eu podia levar o gatinho, desde que…
A alegria era tanta, que nem levei em muita conta o que me pediram: que eu tinha que prometer que, se algum dia o gato quisesse ir embora, eu ia deixar ele ir. Prometi, é claro, já procurando um saco, uma caixa, qualquer coisa onde acomodar o bichinho pra “viagem”.
Não tinham nada onde levar o gato. Gente humilde, caixas e sacos, mesmo usados, ganhavam destino mais nobre.
Peguei meu chapéu de palha, até li pendurado num galhinho no pé da porta, e coloquei o gatinho dentro. Não sobrava muito espaço, mas parecia bem acomodado. Tirei a camisa e coloquei por cima e de volta pra casa! – desta vez levando um “tesouro”! Um gato só meu! E, ainda por cima, um gato-do-mato! Bem, quase. Um mestiço gato-do-mato, mas pra mim uma onça!
Agradeci os dois velhinhos e, mesmo desatento como todas as crianças, percebi que os dois tinham os olhos marejados. A velhinha ainda levantou uma pontinha da camisa e afagou a patinha que imediatamente apareceu na fresta.
“Cuida bem dele, viu?” – Falou baixinho, eu não sabendo se falava pra mim ou pro gatinho…
Acenei um tchau e pé na estrada.
Na ida tinha levado umas quatro horas. Na volta, a ansiedade – e os miados raivosos do gatinho preso! – me obrigaram a fazer o percurso em muito, muito menos tempo!
Chegando no sítio, corri para fechar portas e janelas da casa com uma só mão, a outra ocupada, segurando o chapéu e a camisa – agora já bem destruída pelas unhas do gato. Minha mãe só observava curiosa, tentando entender o que se passava. Enxugava as mãos num pano de prato, por alguns momentos esquecida dos afazeres da cozinha.
Finalmente, após garantir que não havia sobrado nenhum vãozinho por onde o bicho escapar, tirei a camisa – tentei fazer isso devagar mas, ao ver a primeira brecha, o gatinho escapuliu e correu para debaixo do sofá onde, eu acho que ele acreditava nisso, estaria seguro.
Me agachei e só dava pra ver o brilho de seus olhos no escurinho de seu “abrigo”.
Apesar de devidamente avisado pelos rosnados, enfiei a mão para pegá-lo e ganhei como prêmio pela idiotice uma unhada que esguichou sangue.
Minha mãe trouxe um pano de prato limpo para eu enrolar na mão e, muito mais experiente no trato com animais, me entregou uma cabeça de frango, recém limpa.
Com cuidado empurrei a carne para debaixo do sofá e me afastei um pouco, a cabeça encostada no chão, tentando ver se ele aceitava aquela “oferta de paz”.
Ele primeiro tocou, depois cheirou e então abocanhou o que pode daquele cabeção e, entre rosnados, mastigou a carne como se estivesse matando um inimigo – que, naquele momento, ele devia achar que era eu!
Me ajeitei no tapete e fiquei apreciando – assim que meus olhos se acostumaram mais com a penumbra – ele destroçar o frango.
Claro que não conseguiu comer tudo. A cabeça do frango era quase do seu tamanho!
Quando parecia que tinha acabado, levei a mão para pegar a sobra e, por pouco, não ganhei mais um arranhão. E dá-lhe rosnado!
Nada mais importante para fazer, fiquei ali deitado, de olho nele. E ele de olho em mim.
Foi escurecendo e eu, bem cansado do dia cheio, acabei cochilando algumas vezes. Numa dessas acordei com cócegas no queixo. O gatinho, provavelmente achando que eu não oferecia mais perigo, saiu de baixo do sofá e, reconhecendo meu cheiro, se ajeitou junto ao meu pescoço. Fiquei paralisado. E não era de medo e sim de alegria, porque ele havia me aceitado! Com cuidado comecei a alisar o topo de sua cabeça e pude ouvir, bem baixinho, um ronronar.
(Mesmo depois de crescido, ele nunca conseguiu ronronar alto.)
No dia seguinte acordei em minha cama – devo ter ido pra lá no meio da noite, meio dormindo.
O gatinho espichado de um lado ao outro de meu pescoço. Um hábito que, mesmo depois de crescido, grande e pesado, ele não perdeu.
Como ele não poderia ter nome de gente, porque melhor, batizei-o de Chano, de bicho, bichano: chano…
Enquanto pequeno chamava de Chaninho. Conforme cresceu aceitou a mudança de nome para Chano e, já adulto, quando virou um gato muito (!) grande, Chanão.

Vivemos grandes aventuras naquele sítio…

Caçando passarinho – eu derrubava com uma estilingada (mais tarde ganhei uma espingarda de pressão e aí virou até covardia!…), ele corria para pegar, comia a cabeça (este costume também ficou) e ficava “velando” o corpo da ave até eu chegar e guardar o corpo no embornal. Hoje me arrependo, mas na época de moleque de sítio achava muito natural matar todos aqueles sabiás, rolinhas e outros, tão gordinhos quanto.

Brincando de pega-pega em dia de chuvarada – eu corria em zigue-zague entre as mixiriqueiras tentando fugir e ele, rápido como só um felino pode ser, correndo em curva, me esperava atrás de uma delas – eu nunca conseguia adivinhar qual – e vap: pulava na minha perna. Caíamos escorregando na lamaceira, nos lambuzando de lama e sangue – o meu sangue, é claro.
Quando voltávamos, “direto para o banheiro… os dois!”, intimava minha mãe.
Um bom banho (nessa hora as unhadas ardiam pra caramba, mas quem liga…), ele primeiro.
Depois de seco, bem enxugado com a minha toalha, me assistia tomar banho deitado em cima do cesto de roupa suja, se lambendo para “pentear” o pelo, eriçado pela toalha.
Um bom lanche de café com leite, acompanhado de cará cozido e amassado com manteiga feita em casa pra mim, um bom bife para ele e, barriga cheia, hora de deitar na rede da varanda, pra assistir o fim da chuva e o começo da evaporação da água, quando o sol novamente dava as caras.
Parecia que também o mundo inteiro acabara de tomar um belo banho! Até o cheiro, de terra e mato molhados, era bom!
Pra quem não sabe, tem uma época do ano no litoral sul que a chuva tem hora marcada pra chegar. Quase que dá pra acertar o relógio por ela.

Alguns anos depois, estudando na cidade de Registro, eu não tinha muita chance de ver o Chanão, que ficara no sítio.
Nas vezes em que nos encontramos, ainda era uma festa. Mesmo depois de velho ele ainda não resistia a uma brincadeira!
Em algumas das vezes que fui lá, ele só apareceu depois de eu chamá-lo bastante. Em outras, não apareceu. Devia estar longe naquelas grotas, caçando ou namorando (Ele deixou um bocado de descendentes por toda a região. Todos com aquela pelagem cinza diferenciada.)
Minha mãe contou que agora era assim: vinha de vez em quando, sujo, maltratado, algumas vezes machucado. Aí era tratado, comia e dormia um dia ou dois e se mandava.
Acho que, com a idade, ele havia concluído que a vida junto com os humanos não valia a pena.
Ele já não se adaptava aos tempos onde era obrigado a conviver com cachorro – que alguém da família trazia para o fim de semana (mal-educados, ele deu uns “corretivos” bem aplicados em alguns deles), com as maldades que as pessoas faziam com ele (teve até um sobrinho que tentou afogá-lo no tanque de lavar roupa – só não conseguiu porque peguei-o no flagra e cuidei de dar-lhe um bom “caldo” na mesma água!) e, provavelmente, também sentiu muito a falta deste amigo para recebê-lo, dar-lhe um banho morno, oferecer um lanchinho e abrir espaço no meu cobertor, quando voltava de madrugada e invadia a casa pela persiana do banheiro…
E assim o Chanão foi se “alongando” – que é como dizíamos quando um bicho retornava ao seu habitat natural – até que um dia, provavelmente pressentindo a iminência da morte, foi e não voltou mais.
Sem atinar com a coisa, eu havia cumprido aquela promessa feita aos dois velhinhos.

Pra não esticar mais a história – e olha que esta história tem muitos sucedidos! – vamos encerrando.

Hoje, velho, quem está de saco cheio dos humanos sou eu. Da maioria, pelo menos… De mim mesmo, inclusive, por motivos óbvios.
Está complicado conviver com a má educação (aquela que a gente recebe dos pais, não essa da escola que, em minha opinião, ainda deveria ser chamada de “ensino”) generalizada.
Não dá pra aceitar essa “nova” ética – ou com a falta dela.
Essa ignorância sobre valores morais importantes, talvez porque considerados ultrapassados, arcaicos até.
Esse tal “politicamente correto”, onde a garantia da impunidade é a principal característica e motivação.
Essas mentiras pela sonegação – e edição conveniente! – de informações, publicadas pela grande maioria dos veículos de imprensa, mais preocupados com a rapidez na entrega da informação (“Você viu primeiro aqui!”) que com a verdade.
Depois de anos me “alongando”, pouco a pouco me afastando de pessoas – porque é delas que se trata – que considerei nocivas (até posso ter errado em alguns casos, mas creio que é melhor pecar pelo exagero que pela falta), acredito que está na hora de também eu me “alongar” de vez.
Só me falta a coragem instintiva do meu gato-do-mato…

Fotos originais do Chanão.

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