S. de bêbado não tem dono…

Idos dos anos 1980, Cabreúva, interior do estado de São Paulo.
Apesar de pertinho da capital, terra de caipiras… Assumidos!

Uma de minhas cunhadas ficou muito doente.
Veio pra Capital, para se tratar no Hospital das Clínicas.*
Os pais e alguns irmãos ainda moravam num sítio, pertinho de Cabreúva, então uma cidadezinha de uns dois mil habitantes (Acho que é o que tem ainda hoje.).
Do hospital vem a informação que o banco de sangue está precisando de doadores.
Uma estratégia que acredito seja usada ainda hoje, para conseguir doadores: “casar” uma internação com um pedido de doação de sangue – como o tratamento do doente não é cobrado da família (já foi cobrado na forma de impostos…) – esta corre pra pedir aos familiares e amigos que se disponham à doar. E é claro que a coisa funciona.

Junto com o pedido, algumas recomendações: não pode ser criança nem muito velho, não pode ser muito magro, nem estar doente e por aí vai.
Recomendações que nem sempre são repassadas aos possíveis doadores.

Um dos meus cunhados, o mais novo deles, chegado numa gandaia, conhecidíssimo na região, sabendo do pedido do hospital, correu a espalhar a notícia para os amigos de farra – certeza de fazer a notícia chegar a todo mundo!

Marcaram um dia pra irem todos para a Capital, “doar sangue pra salvar a irmã do amigo”!
Praça da Matriz, umas dez, dez e pouco da manhã, e começaram a chegar os amigos…
Antes do meio-dia já havia uns trinta ou quarenta deles e sempre chegando mais.
Esperar sem uma cervejinha fica difícil, né?
O dono do botequim nunca faturou tanto! As coxinhas e o torresmo acabaram logo, mas o estoque de cerveja era grande – tudo geladinho!

Duas horas e a turma era bem grande. Um deles, funcionário público, corre na Prefeitura e “empresta” um caminhão tipo pau-de-arara, para levar aquela turma toda pra Capital.
Abrem espaço na carroceria pra mais umas caixas de cerveja (e alguns garrafões da famosa cachaça da região). Alguns doadores não couberam e ficaram pra trás – mas quem vai querer descarregar algumas garrafas, não é?

Viagem curta pela estrada dos Romeiros e pouco tempo depois o caminhão estacionava em frente ao Hospital das Clínicas e despejava sua lotação de doadores.
E despejar é a palavra certa, porque a maioria nem conseguia manter-se em pé, de tão bêbada.

Os recém-chegados abriram espaço entre os doentes do saguão e, ordeiros como só os bêbados sabem ser, fizeram uma balouçante fila em frente ao guichê de doação.
As mocinhas encarregadas da recepção, atarantadas, chamam a chefe pra dar um jeito na situação.

Uma senhora bem “grande”, ares de poucos amigos, chega, olha aquela multidão, pede silêncio e dá a notícia:
– Ô cambada de “inguinorantes”!… Bêbado não pode doar sangue!

*Desde sempre e até hoje as cidades do interior mandam seus doentes para tratamento na Capital. Esperteza dos prefeitos desses municípios que, ao invés de investir na construção de um hospital – custa caro e demora muito pra poder inaugurar – preferem usar a verba da Saúde para comprar ambulância, para levar esse povo para São Paulo, transferindo a responsabilidade pelos cuidados para outros governantes e usando a bela área branca das ambulâncias como espaço para a sua própria propaganda. Quem passa próximo ao HC pode ver esses outdoors ambulantes estacionados nas imediações.

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