Um fotógrafo das antigas.

Dia destes estava no supermercado, quando assisti uma cena que acabou se tornando muito comum, principalmente nos últimos tempos: uma menininha de uns seis ou sete anos discutia com a mãe sobre comprar um determinado refrigerante.
A mãe, até que bem paciente, tentava explicar para a criança – racionalmente, como se esta também fosse adulta! – que o tal refrigerante fazia mal, que tinha muito açúcar, que estragava os dentes e por aí ia…
A menina, à falta – Óbvia, afinal uma criança! – de argumentos, batia o pé e gritava que queria, porque queria e pronto!
Adivinhem quem “ganhou” a discussão…

Imagino como essa criança se sentirá – e que tipo de adulto ressentido se tornará – quando for maior e descobrir que não, ela não tem direito assegurado pelo simples fato de ter nascido (e por irresponsabilidade de seus pais) a ter tudo o que deseja, da forma que deseja e quando deseja… E que a recusa à sua exigência por esses “direitos” pode até ser violenta, dependendo de quem ela confrontar

Assistindo aquilo, lembrei do Miguel Puccinelli.
Um de meus melhores amigos, bem mais velho – tinha uns trinta e tantos anos mais que eu – fotógrafo das antigas, morreu antes de ver o surgimento das câmeras digitais.
Sangue italiano, gordo à época como sou eu hoje, sisudo por natureza (Mas quando sorria, parecia que um papai noel sem barba entrara no local!), pescador dos bons, amizade difícil de conquistar mas que, depois de um tempo de convivência e conhecimento, difícil de quebrar – daquelas amizades para sempre.
Tornou-se meu amigo pela convivência como meu fornecedor, indicado por um cliente da área de brinquedos, para quem criei embalagens, folhetos e anúncios durante anos.
A princípio bastante desconfiado do “garoto” caipira e turrão, designer (“Ora vejam lá se isso é profissão que se apresente!”), acabou por me aceitar, muito por causa do grande interesse que demonstrei por aprender os segredos de sua profissão – e ele me ensinou muitos, desde “diagramar”  uma foto ajustando a cena a ser fotografada vendo-a virada de ponta-cabeça no visor da câmera (uma das Hasselblad quatro por cinco que usava), quanto como fazer uma revelação com viragem em sépia, um efeito magnífico em foto branco e preto, pra ser admirada na cópia em papel!
Grandes pescarias – tanto aquelas de dourados, piavuçús e piraputangas no rio Miranda, no Mato Grosso, quanto aquelas de lambaris (muitos!) na represa de Furnas, em Minas.
Vale o aparte: morreu nas barrancas do rio Paranapanema, para onde se alongou depois de velho, e para onde “arrastou” uma mocinha que por ele se encantou.

Pois bem. Como eu dizia, o Miguel já fazia todas as fotos para essa indústria de brinquedos. Como nos demos muito bem – de início só profissionalmente – ele continuou fazendo, agora com minha criação, direção de arte e produção. Fizemos juntos centenas de fotos. Muito boas, modéstia à parte dos dois. (Lembrando que na época, ainda não digital, não se fazia dezenas de fotos para “salvar” uma. O fotógrafo precisava ser realmente bom!) E algumas dessas fotos incluíam modelos…
E aí é que a cobra fumava!
O Miguel odiava fazer fotos com crianças e, para brinquedo, tinha que ter criança, não é?
Na verdade, o problema dele não era tanto com as crianças e sim com os pais, que insistiam em acompanhar seus filhos-prodígios (era o que todos eles achavam…) nas sessões. Que não se continham em ficar gesticulando pra chamar a atenção de seus pimpolhos, pedindo um sorriso, e até tentar um ou outro “jogo sujo”, para que o seu filho aparecesse melhor que os outros…
Um inferno, até que o Miguel fazia-se impor, tanto pelo tamanho da barriga, pela voz tonitruante (acho que essa é a melhor palavra para descrevê-la), quanto pelo enviesar de suas imensas sobrancelhas, expulsando todos e fechando a porta do estúdio.
Normalmente era o suficiente para resolver o problema de insubordinação das crianças.
Menos em uma ocasião. A primeira que tive a chance de assistir.
Um dos modelos, filho de um contra-parente de um diretor da indústria, garoto loirinho, muito bonitinho, fotogênico pra caramba, continuava a perturbar todos, derrubando as peças do brinquedo, cutucando as outras crianças, fazendo careta na hora do clique…
Já de saco muito cheio com a má educação do menino, disse ao Miguel que eu correria o risco de me indispor com o tal diretor e portanto, com o cliente, mas ia dispensar o “modelo”.
Acho que era isso que ele estava esperando ouvir de mim, porque me pediu pra esperar, saiu de trás da câmera, andou vagarosamente até o cenário, passou a mão nos cabelos de uma criança, afagou outra e, chegando no “pestinha”, pegou-o pelas orelhas – apertou muito, porque vi os olhos do menino se encher de lágrimas – e falou, com um sorriso enorme (o papai noel!), que ia de orelha a orelha:
– Mas que menininho lindo! – E balançava o garoto pra frente e pra trás que, de tão assustado, não conseguia dar um pio. – Tão bonzinho! – E completou:
– Aposto que esse menininho bonitinho consegue ficar quietinho, quietinho e fazer tudo o que o tio Miguel mandar, não é?!
O encrenqueiro, que não conseguia tirar os olhos arregalados do rosto sorridente do Miguel, balançava a cabeça fazendo enfaticamente que “sim”.
Miguel largou o garoto, fez um cafuné na cabeça dele, ajeitou seus cabelos e, virando-se pra mim e para o iluminador, que só assistíamos a cena, mandou:
– Andare a lavorare, mia gente!

Em tempo: na época também não havia Photoshop, então tive que contratar um retocador (eu ainda não havia aprendido a fazer retoque americano – com tinta e aerógrafo), para dar um “jeito” nas orelhas do garoto, inchadas e vermelhas como pimentão. Um serviço caro, que paguei com a maior satisfação!

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