Pensando bem, que mal tem?

Para quem não conhece, o caiçara é aquele caipira do litoral, conhecido por sua “moleza”. Dizem que é culpa das lombrigas, que acham em sua barriga o ninho perfeito para se multiplicar.
Demora um pouco, você precisa ficar um tanto mais velho para compreender a vida desse povo. Morando na cidade grande, onde o motivo de tudo é o dinheiro, fica difícil entender porque essa gente “não gosta” de trabalhar.

Hoje não sei como andam as coisas por lá, mas há algum tempo era comum você encontrar, na estrada que liga Pariqüera a Iguape, no último trecho, já acompanhando os canais do Mar de Dentro, um caiçara indo para a cidade levando na fieira nada mais que um ou dois robalos de bom tamanho.
“- Hoje esse aí não caga espuma…” – Diziam as línguas-tortas dos motoristas em seus carrinhos, que passavam levantando poeira no caboclo. Naquele tempo esse trecho da estrada ainda era de terra.
Em Iguape ele vende os peixes e compra (ou faz escambo com o vendeiro) os mantimentos que não produz: cachaça, café, pinga, anzol, aguardente, linha de nylon, água que passarinho não bebe…
Em casa ele deixou um outro robalo, escolhido, que ele mesmo prepara com cebola, cebolinha e limão caipira e acompanha com um pirão de farinha de mandioca torradinha de poucos dias. Veja receita no post “peixada caiçara”.
Arroz não precisa, dá muito trabalho plantar, colher, secar, beneficiar. Pra sobremesa uma banana-da-terra frita salpicada com açúcar mascavo.
Final de tarde ele fuma um cigarrinho de palha na beiradinha do braço de mar, os filhos barrigudinhos nadando na água que o sol do dia inteiro cuidou de amornar, a mulher lavando os cabelos com o sabonete cheiroso que ele trouxe hoje mesmo. O cachorro jaguapoca deitado ali do lado, batendo a pata atrás da orelha, coçando as pulgas. A maritaca quietinha no poleiro, cabeça enfiada por trás da asa, pronta pra dormir. O sol grande que só, refletindo na água que parece virar sangue de tão vermelha. A mulher torce os cabelos e chama as crianças. A passarinhada vai se aquietando, os bugios fazem sua última algazarra, as cigarras vão encerrando a cantoria, a suindara passa piando para os mortos. Os grilos e os sapos começam seu concerto da boca da noite. Deixa as janelas abertas que o vento vira novamente, leva embora as muriçocas e trás um friozinho bom de dormir encaixadinhos.
Hora de tomar mais um golinho de cachaça e ir pra cama que amanhã bem cedinho, junto com o sol, ele levanta, pega a canoa e vai pescar mais uns peixinhos. Se der peixe grande, só um dá. Amanhã não é dia de ir pra cidade.

(A imagem aí em cima é uma homenagem à Emulsão de Scott, um “santo remédio” do início do século passado.)

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