Eu e Deus!

Conta a gente do lugar que lá pros canfundós do Ribeirão das Mortes, um sitiante das antigas, família formada, as filhas já bem casadas, alguns netos, resolveu dar para o filho mais novo um pedaço de terra para que este começasse a vida. Escolheu uma gleba de dois alqueires, no canto mais inculto da sua propriedade, beirada do rio e lavrou a escritura em nome do caçula. Pitoco era o apelido do rapaz. Sujeito forte, trabalhador que só dois dele, tão orgulhoso que preferiu não pedir emprestado pra ninguém – nem pro pai e se dispôs a erguer sozinho o cantinho onde pretendia criar sua própria família.

Lugar de capoeirão fechado, ninho de muita cobra e ponto de pouso de nuvens de pernilongo e muriçoca, foi preciso mesmo muito esforço, trabalho duro de verdade, para preparar a terra para o plantio, levantar a casinha de pau-a-pique, começar a criar os primeiros porquinhos e galinhas em ameias. Quase um ano de luta e o sitiozinho até que estava bem formado.
Acontece que na vila ali perto havia um padre já bem velho, escolado nas artes do trato com a gente humilde. Padre Teotônio. Todo ano o padre organizava uma quermesse das mais concorridas da região. Contava para o sucesso do empreendimento com a participação dos moradores, que doavam produtos e talentos para serem leiloados na festa. E, é claro, a igreja ficava com o total arrecadado.
Pois bem. Fazia o padre sua visita anual de “motivação” aos sitiantes para as doações, quando se deparou com o sítio do Pitoco, que ele conhecia desde menininho, mas que não via mais, nem nas missas de domingo o rapaz tinha aparecido ultimamente.
Espantado com as benfeitorias do lugar, bateu palmas para chamar a atenção do moço que lutava com um mourão de aroeira – por certo ia reformar a cerca.
– Boa tarde, esse menino. – Cumprimentou o padre, não concedendo ao rapaz o reconhecimento da identidade, pra lá de sua conhecida – uma maneira de desmerecer a pessoa, para baixar o valor de quem se quer tirar alguma coisa ou favor.
Vendo o padre Teotônio de batina preta, suando debaixo do sol, o caipira tirou o chapéu pra junto do peito, abaixou um bocadinho a cabeça em respeito:
– Boa tarde, seu padre.
Percebendo a oportunidade, esperto, o velho padre lançou:
– Mas que belo trabalho vocês fizeram por aqui!
– Vocês? – Se espantou o matuto.
– Pois é… – Confirmou o padre. – Você e Deus!
O caipira olhou bem para o padre, puxou um lenço encardido do bolso, enxugou o suor da testa, apontou para a seara pronta para a colheita e respondeu:
– Ah, seu padre. Tá assim agora, depois que eu meti a mão na enxada. Precisava ver a tapera que era isso aqui quando era só Ele que tomava conta!

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