O fim da privacidade.

Cena 1. Meados da década de 1990. Uma bela tarde de primavera, você e seus filhos passeiam na praça. Parada obrigatória no sorveteiro de rua, um sorvete diferente pra cada um. Você ensinou seus filhos a não jogar nada na rua. Então, eles cuidam de procurar um cesto de lixo para colocar a embalagem do sorvete… E depois também o palito.
Vindo em nossa direção, um daqueles jovens marombados, forte mesmo. Desses de impor uma distância respeitosa. Com ele um cão doberman com porte e cara de poucos amigos. Na coleira, mas sem focinheira.

Ele para ao lado de uma floreira e o cachorro aproveita para fazer suas “necessidades”.
O fisiculturado olha para a “obra” do cão, talvez procurando alguma indicação de seu estado de saúde, puxa a coleira e se afasta calmamente.
No chão fica um monte(!) de fezes, para ser pisada por um incauto qualquer.
Ele nota, mas não dá a menor importância para você nem para as outras pessoas, que assistiram e fotografaram a cena com suas câmeras digitais.

Cena 2. Início do século 21. Sabadão de manhã, você faz suas compras no supermercado. Sua cara-metade te passa pelo celular alguns itens que você esqueceu de anotar.  Você ouve uma gritaria no corredor ao lado. Curioso, vai ver o que está acontecendo.
Uma mulher, totalmente transtornada, rosto vermelho, a raiva espumando nos cantos dos lábios muito bem pintados, grita com uma menininha de uns 8 ou 9 anos, também alterada, braços cruzados e lábios apertados em atitude de confronto.
Típica discussão de mãe e filha. A mãe diz que “não, não vai comprar o (salgadinho)! Que é muito caro, que ela já está gorda!…” A filha bate o pé e afirma que “não quero nem saber! Eu quero, porque quero e pronto! Se vira!”
Dois ou três da “platéia” já sacaram de seus smartphones e filmam a cena. Você aproveita o embalo e com um toque inicia sua gravação…
A mãe percebe e fica ainda mais nervosa. A criança percebe e fica ainda mais exigente; agora ela também quer comprar o refrigerante!
Nesse ponto a mãe perde totalmente as estribeiras e estala um forte tapa no rosto da menina, que fica vermelho na hora.
“Oooooh!” ecoa a indignada platéia, agora formada quase que exclusivamente de cineastas.
A criança engole o susto e a dor e se deixa arrastar para fora do supermercado pela mãe…

Cena 3. Ano 2023, 2024, por aí… Você visita a Câmara dos Deputados. Na entrada do salão, o segurança recolhe todas as câmeras e celulares. “Privacidade parlamentar”, explica ele.
Você fica embasbacado com o luxo e as mordomias, pagas com o seu dinheiro.
Ali aquele deputado, que se diz “defensor dos pobres”, beberica um scotch 18 anos. Mais adiante outro ostenta um Patek Philippe de bem uns 200 mil. Dólares! E olha o sapato de couro de jacaré daquela deputada defensora do meio ambiente!
Você, que deixou de ser bobo já faz um tempo, acionou seu Google Glass assim que entrou e a câmera, disfarçada nos seus óculos vintage, está gravando tudinho!

Cena 4. Acredito que por volta de 2030, mais ou menos. Você e mais umas vinte pessoas matam o tempo em frente a um prédio da sua rua. São todos mais ou menos conhecidos, mas o que os reuniu ali foi uma informação compartilhada na rede social…
Pronto! Olha lá! Lá vem ele… É ele sim, olha o cachorrão! É ele o “porco” que leva o cão para cagar na calçada dos outros!
Basta você olhar para o “alvo” e dar uma piscadinha especial, que sua Smart Lens (Sua lente de contato com câmera, da Samsung ou do Google…) filma tudo o que você estiver vendo, em alta resolução, com som direto e locução – e faz upload rapidinho naquela gigantesca rede social!
E com você, toda a turma que acompanha o marombado e seu cachorro em seu passeio diário…

Espera, espera! Aquela ali não é a mãe-monstro, que espanca a filha?
Olha ela! Posta ela!…

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